Essa é a história que você acha que conhece:
Quando Narciso nasceu, sua mãe, Liríope, levou-o até Tirésias, o vidente cego, e perguntou: "Ele terá uma vida longa?"
Antes de virar profeta, Tirésias havia passado sete anos confusos como mulher. E nesse tempo ele fez duas descobertas sobre as mulheres. Primeiro: que elas sentem mais prazer no sexo do que os homens. Quando contou isso para Hera e Zeus, Hera, furiosa, o cegou, o que o levou à sua segunda descoberta:
Zeus tentou compensar sua cegueira dando-lhe o poder de ver o futuro. Então, Tirésias deu a Liríope sua profecia enigmática:
A história comum é que:
Narciso era tão bonito que todos queriam ficar com ele, mas ele rejeitava todos: não, não, não, não, não – ninguém era bom o bastante.
Até que um amante rejeitado, consumido de raiva, implorou a Nêmesis, deusa da vingança:
Nêmesis ouviu a oração e fez Narciso se apaixonar por si mesmo: ele foi levado a uma poça de água, e quando olhou para ela, se apaixonou pelo que viu.
O que ele via não era real, então, é claro, não podia amá-lo de volta. Mas Narciso sentou-se pacientemente, para sempre, esperando que um dia aquela pessoa bonita no fundo da piscina saísse e o amasse.
Você ouviu as palavras, mas sua mente as distorceu e substituiu por outra coisa. Mesmo depois que eu te contar isso, você terá dificuldade em lembrar.
Você pensa que Narciso estava tão apaixonado por si mesmo que não conseguia amar ninguém. Mas não foi isso. A história conta o contrário: ele nunca amou ninguém e então se apaixonou por si mesmo.
Entende? Porque ele nunca amou ninguém, ele se apaixonou por si mesmo. Esse foi seu castigo.
Você pensou que ele rejeitava todos porque se amava demais, mas ele rejeitou todos antes de se amar. Como ele saberia que era tão belo? Ele nem reconheceu o próprio reflexo.
Você pensou que nemesis significava inimigo, você pensou que significava a pessoa que sempre se opõe a você, aquela com quem você mais luta. Uma pessoa que é algo como você, mas o oposto.
Algumas pessoas tentaram dizer que o lago era mágico, que o enganou, lançou um feitiço sobre ele, tornando impossível para ele desviar o olhar. Mas isso é bobagem.
Mas não havia magia. Nêmesis só precisou levá-lo até um lago comum. O resto, Narciso fez sozinho.
O que Narciso fez quando viu algo bonito naquela poça? Ele fantasiou e sonhou com todas as diferentes possibilidades daquela pessoa, todas as coisas que aquela pessoa poderia ser para ele.
E, como Ovídio descreveu sobre outra pessoa:
Essa é uma história estranha. Você sabe que o protagonista é Narciso, mas o título é "Eco e Narciso". Por que achamos que Eco é apenas uma personagem secundária? Quem fez de Eco uma personagem secundária?
Eco era uma ninfa com uma voz linda, mas ela falava demais, então Hera a amaldiçoou a só poder repetir as palavras que alguém mais dissesse primeiro.
Eco se apaixonou perdidamente por Narciso. Ela o seguiu, o perseguiu, suspirou por ele, mas ele não quis saber dela, rejeitando-a cruelmente. Mesmo depois que Narciso morreu, ela o desejou, perdendo-se nesse amor, eventualmente defininhando até não restar nada além de uma voz.
Mas vamos voltar ao começo da história dela, não, o verdadeiro começo da história, ou você acha que isso é um sonho que começa no meio? Se fosse, teríamos que interpretá-lo como uma realização de desejo e não como um aviso.
No começo, Eco estava observando-o, escondida, mas Narciso sentiu que alguém estava lá, e ficou excitado com isso. "Venha!" ele gritou.
"Venha," ela só pôde ecoar, e ficou escondida, o que só fez com que ele a desejasse mais. Que mistério é esse? Ele não podia vê-la mas podia ouvir sua voz, e naquela voz insondável estava encarnado todos os amores possíveis que ele podia imaginar. Ajudou que essa mulher misteriosa soubesse exatamente o que dizer para ele. Ela era perfeita para ele em todos os sentidos, ela era a causa de seu desejo.
E então ela saiu do esconderijo, e ele a viu.
Ela era linda? Indubitavelmente. Mas no momento em que ele a viu, ele se contorceu: "Argh - melhor morrer do que você deveria ter tudo de mim!"
O que havia de tão errado com ela? Não era apenas que ela podia ser mais baixa ou mais pesada do que ele havia imaginado. O que estava errado era que naquele instante ele a experimentou, ela deixou de ser qualquer outra coisa.
Mas se Eco não era mais uma projeção, ela ainda era um reflexo. Eco, como todas as mulheres, ofereceu ao seu homem uma espiada dentro de sua alma, tudo que ele tinha que fazer era olhar:
Mas ele nunca foi ensinado a fazer perguntas como essa. Na verdade, ele foi ensinado a nunca fazer perguntas como essa. Que tipo de homem atrai uma mulher que só pode ecoá-lo? Deve haver um nome para esse tipo de pessoa, e ele já o tinha.
Se ele tivesse considerado isso, poderia ter tentado mudar a si mesmo, ou pelo menos reconhecido como eles eram similares.
Agora, o que isso poderia significar?
Oh, ele estava certo: Narciso viveu uma vida longa – embora não feliz. Ele passou a vida sozinho, sonhando e olhando para uma poça, esperando morrer.
Mas a profecia de Tirésias parece... errada, contrária ao espírito grego, uma afronta à lógica; "conhecer a si mesmo" não deveria ser a maior virtude?
Mas é tão simples, a explicação. É tão simples que ninguém nunca pensou nisso, e a razão pela qual ninguém pensou nisso é que é terrível demais para se pensar.
Quando Laio e Jocasta foram informados de que Édipo eventualmente os destruiria, eles pregaram seus tornozelos e o abandonaram na floresta, garantindo que algum dia ele teria motivo para fazê-lo. E então, quando os pais de Narciso ouviram os requisitos para a vida longa de seu filho... eles teriam feito tudo o possível para garantir que ele não se conhecesse.
Como você faz uma criança se conhecer? Você a cerca de espelhos. "Isso é o que todos veem quando você faz o que faz. Isso é quem todos pensam que você é."
Você faz com que ela seja testada: esse é o tipo de pessoa que você é, você é bom nisso mas não naquilo. Essa outra pessoa é melhor que você nisso, mas não melhor que você naquilo. Esses são os limites pelos quais você é definido. Narciso nunca foi autorizado a encontrar perigo real, glória, luta, honra, sucesso, fracasso; apenas versões artificiais manipuladas por seus pais. Ele nunca foi autorizado a perguntar: "sou um covarde? Sou um tolo?" Para garantir sua longevidade entediante, seus pais não teriam querido uma resposta definitiva em qualquer direção.
Ele foi autorizado a viver em um mundo de especulação, de fantasia, de "algum dia" e "e se". Ele nunca teve que ouvir "muito mal", "muito pouco" e "muito tarde".
Eles não lhe ensinaram como resistir à tentação, como lidar com a falta. E certamente não lhe ensinaram como NÃO querer o que ele não podia ter. Eles não lhe ensinaram como desejar.
Os pais de Narciso eram semideuses - eles não sabiam como criar um bom filho, o que um pai adequado precisa fazer? No entanto, eles ouviram um charlatão de qualquer forma. Eles receberam informações sem sentido de um suposto especialista e abandonaram todo o bom senso, e assim criaram um monstro que trouxe morte para pelo menos uma pessoa e miséria para todos.
Você está pensando se é verdade que os pais criam o narcisismo que assombra seus filhos pelo resto de suas vidas. Isso combina com suas próprias experiências? Você está tentando lembrar de sua própria infância.
A moral da história de Narciso, contada como um aviso para as próprias pessoas que se recusam a ouvi-la como tal, é que como Narciso se tornou assim é irrelevante. O que era importante era o que ele fez, e o que ele fez...
Imagine a cena como uma grande pintura na parede. Lá está Narciso, sentado à beira da poça, cabeça inclinada para baixo, braço mexendo preguiçosamente na água, sua mente perdida em devaneios. Ao redor dele estão as árvores, a grama, o céu. Nêmesis está atrás dele, braços cruzados, observando a punição.
Agora olhe atentamente para a expressão no rosto de Nêmesis. Há algo estranho ali. Olhe bem para os olhos dela.
Os antigos não contavam essas histórias para passar o tempo ou ensinar às crianças uma lição ou dizer de onde vem a palavra Eco. Você acha que pegamos a cultura pop deles e transformamos em nossa literatura? Essas histórias eram meditações, estudos de caso: o que você vê nelas?
O segredo da história de Narciso é que a história é a poça, é a sua poça. O que você vê nela? É um reflexo e uma projeção.
Mas você conhece o velho ditado: quando você olha para a poça, a poça também olha para você. O que a poça vê quando olha para você? Como ela te julga?
Olhe para trás. Nêmesis está lá. Consegue adivinhar qual será sua punição?